sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Tambores de guerra - A questão indígena e a perseguição às missões



Os missionários cristãos que trabalham nas aldeias indígenas jamais foram vistos com bons olhos por quem faz a política indigenista nacional.

Por Marcelo Brasileiro - http://cristianismohoje.com.br

Os missionários cristãos que trabalham nas aldeias indígenas jamais foram vistos com bons olhos por quem faz a política indigenista nacional. Comumente criticados pelo governo federal, com apoio de setores intelectuais, que os acusam de não respeitar a cosmovisão nativa, os evangélicos têm enfrentado uma verdadeira via crucis para cumprir o “Ide” de Jesus entre os povos indígenas do Brasil. O trabalho deles não se resume, como dizem muitos, a pregar a Palavra de Deus: diversas agências missionárias trabalham entre os povos indígenas há décadas, atuando, entre outras áreas, em ações de saúde, educação e preservação lingüística e cultural. E o clima, que já não era bom, ganhou contornos de guerra religiosa diante das recentes discussões em torno da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, na tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guina. A área localizada em Roraima, com 1,75 milhão de hectares – equivalente a doze vezes o tamanho da cidade de São Paulo – foi criada em 2005, através de um decreto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e foi contestada no Supremo Tribunal Federal (STF) por um grupo de arrozeiros, empresários e políticos. Eles querem que a demarcação não seja contínua, como foi homologado pelo presidente, mas sim, em forma de “ilhas”, permitindo a permanência de fazendas, comércios e prédios públicos na área.
No território, vivem aproximadamente 20 mil índios, divididos em cinco grupos étnicos distintos (ingarikó, patamona, tauarepang, macuxi e wapichana), e as tensões na área se acumularam após o início da operação Upakaton 3 – palavra que, no idioma macuxi, significa “terra nossa” –, nome dado pela Polícia Federal para a série de ações deflagradas no início do ano e que planejavam a retirada dos não-índios da região. A operação foi suspensa em abril pelo STF, que pretende primeiro julgar a constitucionalidade da homologação da reserva.
Enquanto isso, é na Vila Surumu, situada no município roraimense de Paracaima, que reside o epicentro da crise. Com o risco de desaparecer caso o STF decida pela demarcação contínua, ela abriga o foco das tensões entre índios evangélicos e católicos. De um lado da vila, estão concentrados os índios favoráveis à homologação da reserva contínua, ou seja, exclusivamente dos indígenas. A maior parte deles são católicos, ligados ao Conselho Indígena de Roraima (CIR) e com o apoio de órgãos eclesiásticos como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Do outro lado, estão os indígenas contrários à medida do governo federal e que defendem a permanência de brancos na área, inclusive os arrozeiros. A maior parte deles é formada por evangélicos e são ligados a Sociedade de Defesa dos Índios Unidos do Norte de Roraima (Sodiur). “Há famílias que viveram na área com 20 e 30 anos e que casaram com não-índios e foram expulsas de lá”, reclamou Silvio da Silva, da etnia macuxi e presidente da Sodiur.
A polarização tem sido inevitável. O pastor assembleiano Cícero Francisco Sales, que não é índio, mas está na Vila há mais de três anos, contou que ameaças aos crentes e pedradas no templo são constantes. “Certo dia minha mulher, junto com minhas filhas em casa, se deparou com um índio no sofá. Ele dirigiu a ela palavras de baixo calão e disse que iriam destruir a nossa casa e a nossa igreja, fazendo um supermercado no lugar delas”, conta. “Infelizmente, algumas igrejas evangélicas pregam que o demônio é quem quer tirar os não-índios do local. Isso gera intolerância”, rebate a advogada do CIR, Joênia Batista de Carvalho, da etnia wapichana. Primeira indígena do país a obter registro na Ordem dos Advogados do Brasil, ela tem sido uma expoente na luta em defesa da demarcação contínua na Raposa Serra do Sol.

Jogo de interesses – O curioso é que Joênia, que já se pronunciou até na mais alta Corte jurídica do país, atua ao lado da maioria católica, mas é evangélica. “Cresci na Igreja do Evangelho Quadrangular. Meus pais são de lá, assim como boa parte da minha família”, conta. Para ela, o imbróglio não se trata de uma questão de religião, e sim de um engenhoso plano para camuflar interesses econômicos, de forma a conduzir o debate para o pantanoso campo da intolerância racial e de crença. “Há um pesado jogo de interesses. Tentam desviar a atenção do problema através de uma disputa religiosa que, na verdade, não existe”, garantiu a advogada, em entrevista a CRISTIANISMO HOJE. Ela afirma que muitos evangélicos apóiam a luta do CIR, uma entidade de orientação católica.
“Não existe isso de intolerância. Muita gente pensa que vão fechar as portas das igrejas, que agora não terá mais pastor, padre. Não é nada disso”. Segundo a advogada, a lei não permite que um não-índio possua propriedade privada em terras indígenas, mas que as igrejas evangélicas da própria comunidade têm total liberdade de culto. “A Igreja Católica se antecipou e doou seu patrimônio para a comunidade, foi só isso”. Ela diz que os pastores e catequistas poderão continuar visitando a área, desde que a comunidade permita. “Só não será permitida a visita de quem pretende, de alguma forma, levar dano ou prejuízo aos indígenas”. Ressabiado, um grupo formado por 180 evangélicos procurou o governador de Roraima, José de Anchieta Júnior (PSDB) para pedir ajuda. “Há muitas igrejas co-irmãs presentes na reserva. A nossa preocupação é em razão deles desejarem tirar os não-índios. Mas os católicos ficam. Só os ministros do Evangelho devem sair”, reclamou o presbítero Antonio da Costa, da Assembléia de Deus das Nações, em Boa Vista. “Queremos apenas a garantia de que os ministros da Palavra poderão continuar a evangelizar na área”, defendeu, no encontro.
Como resposta, o grupo ouviu que não seriam tolerados episódios de discriminação religiosa. Mesmo assim, os evangélicos realizaram outra manifestação, no dia 8 de março, e reuniram aproximadamente 30 mil crentes no Centro Cívico da cidade, com faixas e gritos pedindo “justiça”. De olho na crescente violência na Raposa Serra do Sol, o presbítero preferiu não se posicionar nem contra, nem a favor da demarcação. “Queremos apenas evangelizar. Pelo que sei, algumas igrejas foram depredadas e queimadas”.
Coincidência ou não, toda essa querela acerca da presença de elementos não-indígenas na Raposa Serra do Sol acontece justamente num momento crucial para o trabalho missionário entre os povos indígenas. Numa recente escalada de investigações, grampos telefônicos, dossiês e suspeitas das mais inverossímeis possíveis, as missões religiosas passaram a ser acusadas, da noite para o dia, de práticas como escravidão indígena, extração ilegal de sangue, biopirataria de sementes da floresta para o exterior, construção de pistas de pouso clandestinas, uso de radiodifusão pirata e venda ilegal de madeira, além remoção de nativos sem autorização, adoção suspeita de crianças, contatos irregulares com tribos isoladas e até o uso de imagem indevida de povos nativos da região amazônica em filmes e materiais para arrecadação de recursos próprios aos objetivos da instituição – além, é claro, de proselitismo religioso.
As acusações vieram de um relatório, realizado pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), a pedido da Secretária Nacional de Justiça. O documento listou 25ONGs supostamente envolvidas em atividades ilícitas na Amazônia. Entre as entidades denunciadas, duas são evangélicas e têm um longo histórico de trabalhos sociais e lingüísticos entre os índios: Jovens com Uma Missão (Jocum) e Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB). “Estas informações são da época em que o Exército tomava conta das questões indígenas. Se um missionário cavava um poço para tomar água, eles diziam que estavam fazendo prospecção. Era um absurdo”, indigna-se Edward Gomes da Luz, presidente da MNTB. Segundo ele, o interesse internacional na Amazônia irá refletir cada vez mais na relação entre governo e missões religiosas. “Alguém vai pagar pelos outros, e isso normalmente recai sobre as missões”, reclama.

“Cárcere paleolítico” – A situação da Jocum é muito pior. Não bastasse ter seu nome no relatório da ABIN, a missão ainda foi envolvida num malicioso dossiê distribuído à imprensa, assinado pelo sertanista Antenor Vaz, da Coordenação Geral dos Índios Isolados da Fundação Nacional do Índio (Funai). O documento intitulado Missão: O veneno lento e letal dos suruwahá (ver box) faz referência à prática cultural de suicídio entre aquela etnia indígena, através da ingestão da raiz do timbó. Segundo o sertanista, as missões cristãs seriam mais “letais” que o veneno usado pelos índios da etnia para dar fim à própria vida. O documento contém graves acusações contra a missão. “Sem entrar na questão de soberania ou teoria conspiratória, esse fato mostra uma briga direta entre a Funai e uma organização fundamentalista americana, que hoje sabe muito mais sobre estes índios do que qualquer instituição de pesquisa no Brasil. Além de questões muito mais graves que podem estar gerando suicídios coletivos em massa, podendo até chegar a um genocídio de um povo”, escreveu o sertanista no e-mail que distribuiu na internet.
“A Amazônia, em geral, tem sido alvo da sanha de gananciosos, e é provável que existam organizações corruptas que ‘exploram’ a boa fé de pessoas. Mas estas entidades não subsistem”, rebate a ex-presidente de Jovens com uma Missão e atual responsável pelas questões indígenas da agência, Bráulia Ribeiro. Ela acredita que a situação se agravou após o rumoroso episódio envolvendo a retirada de dois bebês suruwahá para tratamento médico, ocorrido em 2005. Na ocasião, dois missionários ligados à agência, o casal Edson e Márcia Suzuki – que, frise-se, atuavam havia longa data entre a tribo, a ponto de serem os únicos brancos a falar fluentemente sua língua –, levaram duas crianças da aldeia para São Paulo, onde receberiam tratamento para suas deficiências. A atitude evitou que as recém-nascidas fossem sacrificadas pela comunidade indígena, como manda um rito tribal.
O casal adotou a pequena Hakani, que hoje vive normalmente após tratada de hipotireoidismo, e criou a Ong ATINI, que denunciou ao país a prática do infanticídio nas aldeias indígenas brasileiras, tema de reportagem na primeira edição de CRISTIANISMO HOJE. “Ousamos desafiar o governo em cadeia nacional; ousamos lutar pela vida e não nos conformar com as regras que mantém os indígenas num cárcere paleolítico, impedidos de receber até um simples tratamento médico, direito de todos os brasileiros”, lembra Bráulia.

Mobilização – O impasse em torno da questão tem levado a mobilização de todos os segmentos envolvidos – inclusive, dos índios evangélicos. Temas atuais como infanticídio e demarcação de terras, além da perseguição às missões, foram debatidos no último encontro do Conselho Nacional de Pastores e Líderes Indígenas (Conplei), realizado entre os dias 4 e 7 de setembro, em Manaus (AM). “Trabalhamos principalmente a questão da tutela da Funai, que ao invés de ajudar, prejudica. Faremos um documento, previsto para sair ainda neste semestre, onde manifestaremos nosso direito de sentir e de dizer o que queremos”, explica o presidente da entidade, o pastor Henrique Dias, da etnia terena.
O regime tutelar foi instituído oficialmente através da Lei 6.001 de 1973, conhecida como o Estatuto do Índio, e seguiu um princípio estabelecido pelo velho Código Civil brasileiro de 1916. Ficou estabelecido que os índios, sendo “relativamente capazes” de assumir integralmente suas responsabilidades, deveriam ser tutelados por um órgão indigenista estatal. Entre 1910 e 1967, a função coube ao extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI); atualmente, é a Funai, ligada ao Ministério da Justiça, que executa a política indigenista do país. Segundo a lei, a situação de tutela só pode ser revertida após os índios estarem “integrados à comunhão nacional”, ou seja, à sociedade brasileira.
O líder do Conplei sabe que o tema é espinhoso. “Muitos têm medo de tocar nesse assunto. Mas essa forma paternalista de se tratar o índio não permite que manifestemos nossa própria vontade. Isso acontece na relação do índio com a Funai e também na relação do índio com a própria agência missionária”, aponta Henrique Terena.
O encontro do Conplei pode ser considerado um sucesso em termos de legitimidade, já que reuniu cerca de 1,3 mil índios, representando 49 etnias – cerca de um quinto dos povos indígenas existentes no Brasil. Todos eles se alinharam à idéia de que a questão da tutela deve ser revista. “É um assunto polêmico, mas não porque queremos. As pessoas polemizaram. Estamos trabalhando para sermos protagonista dos nossos interesses”, discursou o missionário e professor de história Edson Oliveira Santos, integrante da tribo bakairi e presidente da Organização dos Professores Indígenas do Mato Grosso. Para ele, as missões têm contribuído muito para a preservação dos mais de 180 idiomas indígenas falados no país e merecem respeito por isso. Mesmo assim, ele acredita que o Evangelho deve ser pregado entre os índios – e pelos próprios índios. “Precisamos do branco, do seu conhecimento e de sua ajuda. Mas é sempre melhor quando um índio fala para outro índio”, sentencia.

Dossiê do barulho
As oitenta páginas do dossiê Missão – O veneno lento e letal dos suruwahá formam um documento, no mínimo, controverso. Organizado para ser uma compilação de todas as informações contra a agência evangélica Jocum, o trabalho traz denúncias feitas pelo próprio CIMI – entidade católica contrária à presença de evangélicos na área – junto ao Ministério Público Federal e frases do livro O chamado radical (Editora Atos), de Bráulia Ribeiro.A obra narra, de forma pessoal, sua aventura até a chegada ao povo suruwahá. Há ainda trechos dos diários de dois missionários que estavam na aldeia, tomados à força por agentes da Funai.
No livro e nos diários, a fé cristã é constantemente citada como o motivo maior pelo qual os missionários decidiram fazer contato com os índios. “Você não pode usar, como álibi para evangelizar, a justificativa de salvar vidas, levar educação. E é isso o que tem acontecido”, alegou Antenor, por telefone, à reportagem de CRISTIANISMO HOJE. O assunto ganhou as páginas da revista semanal Carta Capital, que no fim de julho amplificou as acusações de Antenor, sem contestá-las. “Nem sei como comentar estes absurdos. A mesma revista que nos acusa de maltratar indígenas sugere que se nos retirarmos do local, a tristeza da tribo será tamanha que eles serão levados ao suicídio. É incoerente”, questiona Bráulia. “Se somos tão ruins, como os índios nos querem a ponto de perderem a vida se nos ausentarmos?”
A missionária rebate as acusações de que os obreiros ligados à agência escravizam índios e traficam matéria-prima orgânica. Para ela, no entanto, são indefensáveis as acusações de que os missionários crêem em Deus, ensinam que infanticídio e suicídio podem destruir as populações nativas e fazem programas de conscientização contra o abuso do álcool, prostituição e violência contra a mulher. “Se isso for crime, bem, então somos culpados”, desafia.

Um país, muitas nações
De acordo com levantamento realizado pela Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB) em 2005, há 364 mil índios no país, divididos em 258 tribos. Como há povos isolados até hoje, quantidade pode ser maior.
. 165 delas têm ou já tiveram presença evangélica;
. 5 desses povos possuem a tradução completa da Bíblia em seu idioma;
. 36 dispõem apenas do Novo Testamento traduzido;
. 25 agências missionárias atuam entre os índios;
. 650 missionários brasileiros trabalham exclusivamente com os povos indígenas;
. 20% dos índios brasileiros se declaram evangélicos;

Fontes: AMTB, Revista Veja, IBGE

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