quarta-feira, 25 de março de 2009

Enviando Para Longe Aqueles que Estão Perto


“Havia na igreja de Antioquia profetas e mestres: Barnabé, Simeão, por sobrenome Níger, Lúcio de Cirene, Manaém, colaço de Herodes, o tetrarca, e Saulo. E, servindo eles ao Senhor e jejuando, disse o Espírito Santo: Separai-me, agora, Barnabé e Saulo para a obra a que os tenho chamado. Então, jejuando, e orando, e impondo sobre eles as mãos, os despediram.” (At 13.1-3.)

O primeiro versículo desse texto enumera cinco líderes da igreja em Antioquia, descritos sob a categoria de profetai kai didaskaloi (profetas e mestres). Profetes era aquele que “falava em nome de Deus”. É também utilizado no grego ático tanto para “pregador” quanto para “expositor das leis”. O didaskalos é o mestre (de didasko, ensino) aplicado para aquele que possui discípulos. E parece-me que, nesse caso, os didaskaloi estavam mais ligados à instrução dos novos convertidos em Antioquia. Nessa lista, primeiramente é mencionado Barnabé, o qual era “natural de Chipre” (At 4.36) . Logo em seguida Lucas cita Simeão, referindo-se provavelmente a um africano “Níger” (negro), e menciona Lúcio “de Cirene”, provindo do norte da África. Também lista Manaém, colaço (syntrophos, irmão de leite) de Herodes, e, finalmente, Saulo.

O versículo 2 começa com uma ação coletiva: “servindo eles ao Senhor...” E as duas questões que devem ser levantadas aqui são: quem são “eles” e como serviam ao Senhor. Há três possibilidades para entendermos esse “eles”, já que o texto não os define: a) refere-se a toda a igreja em Antioquia; b) refere-se aos cinco líderes do verso anterior; c) refere-se a Paulo e Barnabé. Por ausência de ligação textual, creio que podemos excluir a “igreja em Antioquia”, restando-nos assim os cinco líderes do versículo 1 e Paulo e Barnabé do versículo 2. De qualquer forma, estes últimos são também mencionados na lista de líderes. Sendo assim, vamos utilizá-los como pressuposto para “eles”.

Leitourgoi – edificadores do corpo de Cristo

O verbo “servindo” (leitourgounton) utilizado aqui aponta para aqueles que serviam ao Senhor como leitourgoi. Havia três formas de alguém se apresentar como “servo” no contexto neotestamentário:

Como doulos – escravo. Nas palavras de Candus, “aquele que pessoalmente acompanha o seu Senhor para realizar-lhe os desejos do coração”. Doulos, no contexto do Novo Testamento, é aquele que tem um compromisso direto com Deus; que serve diretamente ao seu Senhor.

Como diakonos – mordomo. Aquele que serve ao seu Senhor através do serviço à comunidade. Na Bíblia, o termo é usado para aqueles que, sensíveis à necessidade do corpo de Cristo – física e espiritual – servem a Deus.

Como leitourgos – edificador. O termo, ligado à leitourgía, não é restrito como o usamos hoje. Refere-se àquele que serve ao Senhor sendo um canal de bênçãos para seus irmãos. E essa é justamente a raiz do verbo que expressa que Paulo e Barnabé “serviam” ao Senhor. Afirma assim que eles eram, antes de mais nada, “abençoadores” ou “edificadores” do corpo de Cristo em Antioquia. Eram uma bênção, como podemos falar hoje. Eram leitourgoi e, em última análise, serviam to Kuryo (ao Senhor).

Desse modo, podemos identificar a primeira característica apontada pelo texto a respeito desses dois homens que iniciaram a obra missionária como a conhecemos hoje. Não foi a competência intelectual, o título ministerial ou a profundidade teológica, mas sim a fidelidade, e fidelidade de vida em relação aos de perto. Isso nos ensina que aqueles que não são uma bênção perto dificilmente serão uma bênção longe.

Spurgeon já falava, em 1885, que “nada é mais difícil do que se mostrar fiel aos de perto que bem lhe conhecem”. E aqui três rápidas aplicações poderiam ser feitas:
Do ponto de vista pessoal: Não há nada mais perto de nós do que a nossa família. Aquele que não pode ser apontado pela esposa, esposo ou filhos como leitourgós no dia-a-dia em casa dificilmente será uma bênção fora dela.
Do ponto de vista ministerial: Líderes que se destacam nos púlpitos de suas igrejas, mas fracassam com a família e amigos chegados, cedo ou tarde entenderão a incompatibilidade da Palavra com a hipocrisia.
Do ponto de vista eclesiástico: Não há nada mais perto da igreja do que a própria igreja, os irmãos com os quais nos encontramos a cada semana. Se os cristãos não demonstram ser leitourgoi, uma bênção, para aqueles com os quais compartilham o mesmo banco durante os cultos semana após semana, creio que não estão habilitados a pensar em nenhum tipo de programa que leve o testemunho do evangelho aos de longe.

Aphorizo – separando para o envio

O texto conta que, “servindo eles ao Senhor... disse o Espírito Santo: Separai-me...” O texto não esclarece como o Espírito se manifestou e eipen – falou – à igreja. Mas toda a ação deixa bem claro que a igreja ouviu prontamente.

O conteúdo do que o Espírito falara foi “separai-me” (aphorisate), do verbo aphorizo, que é um verbo exclusivista. Este é também usado em Mateus 25.32, quando fala que o pastor “separa” as ovelhas dos cabritos. Aphorizo se diferencia de ekklio, pois não se trata de uma separação de relacionamento (foram excluídos da igreja de Antioquia), mas sim uma separação para uma função (permanecendo ligados à igreja, são agora designados para uma função além da igreja local). É o mesmo termo usado nos Documentos de Cartago, quando cidadãos comuns eram chamados para engrossar as fileiras do exército romano. Portanto Paulo e Barnabé seriam separados porque, primeiramente, haviam sido chamados.

É bom também entendermos que a ergon (obra) para a qual foram chamados é um termo genérico. Tanto pode significar um ato quanto uma função e poderia ser usado por se tratar de uma obra já bem conhecida por todos na igreja – a evangelização dos gentios – ou então para chamar a atenção para o ponto principal desse comando: não a obra, mas sim quem os chamou para ela. Demonstra também flexibilidade ministerial. A obra pode mudar, mas o chamado permanece, pois se baseia naquele que nos chamou.

A expressão “jejuando, e orando” vem como um conjunto que se completa, já que, segundo Stott, “o jejum é uma ação negativa (abstenção de comida e outras distrações) em função de uma ação positiva (culto e oração)”. E continua com “impondo sobre eles as mãos”, que traz a expressão epithentes tas cheiras, a qual possui vasto significado para o conceito de envio missionário. Vejamos os principais:

Sinal de autoridade. Esse “impor de mãos” remonta ao grego clássico – quando um pai “impunha as mãos” sobre o filho que o sucederia na chefia da família, ou seja, uma transferência de autoridade. Para Paulo e Barnabé, isso significaria que eles possuíam a autoridade eclesiástica para fazer tudo o que a igreja faria, mesmo onde esta não estivesse presente. É, portanto, simultaneamente, uma carga de autoridade e de responsabilidade. Como a igreja em Antioquia, eles poderiam pregar a Palavra, orar pelos enfermos e desafiar os incrédulos, mas, ao mesmo tempo, precisariam também compartilhar da fidelidade e da dedicação que existiam em Antioquia.

Sinal de reconhecimento. Também era usado em momentos oficiais, como na cidade de Alexandria. Ali, quando vinte oficiais foram escolhidos especialmente para guardar a entrada da cidade, que sofria com freqüentes ataques de nômades, sobre eles “foram impostas as mãos”. Representava um sinal de reconhecimento de que eram dotados das qualidades necessárias para aquela função. Para Paulo e Barnabé, consistia no fato de que a liderança da igreja reconhecia não apenas o chamado (que era, sobretudo, claro), mas também a capacidade e os dons para cumprirem a missão.

Sinal de cumplicidade. Encontramos também no grego clássico o “impor de mãos” no sentido de cumplicidade. Quando generais eram enviados a terras distantes para coordenar uma província, as autoridades “impunham as mãos”, demonstrando ao povo que eles não seriam esquecidos”; ou seja, permaneciam como parte do corpo. Para Paulo e Barnabé, significaria dizer que, por mais distantes que fossem, permaneceriam ligados à igreja de Antioquia. Dava a entender que a igreja continuaria responsável por eles, amando-os, torcendo para que tudo desse certo e, com certeza, sustentando-os. Ao meu ver, impor as mãos como sinal de autoridade e reconhecimento não é tão difícil como impô-las como sinal de cumplicidade, pois este último é um ato contínuo que demanda dedicação e profundo amor. Kent Norgan afirmou que “é mais fácil amar aquele que se vê e ter compaixão pelo que está sempre ao seu lado”.

Por fim os membros da igreja “os despediram” (apelusan), do grego apoluo, que significa “fazer as honras do envio”. Creio que havia aqui um aspecto prático, em que os líderes e os irmãos pensaram também nas necessidades práticas de Paulo e Barnabé. Apoluo é uma expressão formal, portanto leva-nos a crer que não foram despedidos de forma simples. Houve antes um culto no qual a igreja se reunira oficialmente para enviá-los – um abençoado culto de envio.

Temos aqui alguns princípios que podem ser observados no envio missionário:

No processo do chamado não há apoio bíblico ao individualismo. Isso significa que não é válida a posição de irmãos que alegam ter recebido a direção do Espírito Santo quanto à vocação missionária mas que desejam levar adiante sua missão sem a participação da igreja local. Mesmo em um contexto para-eclesiástico, a igreja local precisa permanecer na linha de frente no processo de seleção e confirmação do chamado. Precisamos crer que o Espírito fala à igreja e devemos esperar submissão daqueles que foram chamados.

No desafio ao envio missionário devemos evitar o institucionalismo. É o outro lado da mesma moeda: a igreja tomando decisões e definindo metas, estratégias e prioridades a despeito da visão daqueles que foram chamados. Precisamos crer que Deus colocará, nesses co-rações, de maneira diáfana, os desejos certos e a motivação que vêm do Alto.

Não devemos enviar para longe aqueles que não são uma bênção perto. Um critério bíblico que encontramos aqui é que irmãos sobre os quais pesam nossa esperança de abençoar os que estão distantes de nós devem, primeiramente, ser reconhecidamente uma bênção para nós, que estamos perto.

No processo do envio missionário, o cordão umbilical não é cortado. No momento do envio, passamos para os enviados, pela autoridade eclesiástica, o reconhecimento de que são qualificados e, especialmente, cumplicidade com a obra para a qual foram separados.

Deus fala a muitos, contudo me parece que aqueles que se humilham ouvem mais a voz dele. Ninguém sabe ao certo como e quando Deus falará, mas jejum e oração – sinais de uma comunidade piedosa e crente – são a postura daqueles que ouvirão a voz do Senhor.

Este artigo foi extraído do livro Com a Mão no Arado, publicado pela Editora Betânia.
Ronaldo Lidório é missionário presbiteriano, doutor em Antropologia Cultural e autor de vários livros.

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